Publicado originalmente em Boletins da ANPOCS, nº 61, 12/06/2020. Disponível em: http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2387-boletim-n-61-cientistas-sociais-e-o-coronavirus
Por Helena Fietz, Anahí Guedes de Mello e Claudia Fonseca

Fonte: Sins Invalid26
#ParaTodosVerem: ilustração de uma pessoa de cabelos curtos com pele de tonalidade entre azul e verde, vestindo uma camiseta rosa e uma saia longa rosa, sentada em uma cadeira de rodas verde e laranja. O texto na imagem diz: “Justiça significa uma resposta à Covid-19 centrada na deficiência”.
Desde o começo da pandemia de Covid-19, foram muitas as discussões sobre quais medidas seriam adotadas por governos e populações a fim de conter a sua disseminação. No Brasil, conforme orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), grande parte dos estados e municípios adotaram medidas de isolamento e distanciamento social que requerem que fiquemos em casa junto aos membros do núcleo familiar, saindo somente quando for extremamente necessário. Essas políticas de prevenção e cuidado, direcionadas à “população em geral” são importantes; entretanto, falar de práticas de cuidado a partir de uma ética feminista (Puig de la Bellacasa, 2017) significa relativizar as respostas prontas e normativas pré-estabelecidas baseadas em preceitos universais, compreendendo que é necessário estarmos atentas à singularidade de cada situação. As perguntas que se impõem são: como essas diretrizes “universais” de combate ao novo coronavírus afetam os grupos sociais específicos? E, o que nos interessa em particular, como afetam as pessoas com deficiência que fazem parte do chamado “grupo de risco”?
Muitas pessoas com deficiência passam a vida inteira prevenindo-se contra a contaminação viral e/ou bacteriana, que podem ser fatais dependendo de suas comorbidades. Logo, alguns gestos praticados a fim de diminuir o risco de contágio – lavar sempre as mãos, usar máscaras, higienizar bem e insistentemente os espaços, próteses, órteses e outras tecnologias assistivas, como cadeiras de rodas, andadores, muletas, bengalas etc. – já faziam parte de seu cotidiano muito antes da pandemia. O que muda com a Covid-19 é que a rotina de cuidados se intensifica ante os novos riscos. Além disso, essas práticas passam a ganhar visibilidade à medida que corpos não deficientes também precisam realizá-las e com isso deixam de ser pensadas enquanto responsabilidade individual para adentrar a saúde coletiva.
Por outro lado, para as pessoas com deficiência obrigadas a constantemente usar o tato para adquirir informações e se locomover no mundo ao seu redor, é praticamente impossível seguir as recomendações universais à risca. A política preconizada de distanciamento diante de objetos possivelmente infectados requer de cada indivíduo a invenção de novas técnicas corporais. Por exemplo, Marina, mulher com paralisia cerebral, conta como um simples passeio pode provocar angústias redobradas:
“Não uso tecnologia assistiva. Mas quando saio para ir ao mercado, por exemplo, morro de medo de tropeçar, me apoiar demais nas coisas ou cair. Faço minhas atividades todas em câmera – ainda mais – lenta e cheia dos receios de que algo acontecesse, e claro, cuidando para não detonar o psicológico por isso…”
Marina
Para além das tecnologias assistivas e as novas tecnologias corporais, o maior desafio permanece sendo a articulação de uma rede de apoio. As teorias do cuidado sublinham a maneira como somos todos interconectados, de como a sensação de autonomia pode ser uma ilusão que permite ignorar a série de atores envolvidos nas redes infraestruturais que sustentam nossa existência. Justamente por ameaçar cortar essas redes, a política de distanciamento social nos obriga a tomar consciência do quanto dependemos de outros, sendo essa percepção muito mais aguda nas pessoas com deficiência.
Para aquelas que dependem de alguém para realizar os mínimos gestos da vida íntima – comer, se vestir, tomar banho -, a proximidade física implicada nessas relações de cuidado complica seriamente essas normativas. Por conseguinte, o trabalho normalmente invisibilizado de uma rede densa de apoio – incluindo membros da comunidade, familiares, profissionais e serviços públicos -, sai da sombra para se tornar uma ameaça de contágio, exacerbada pelas condições precárias em que vive boa parte da população brasileira.
Talvez um dos maiores desafios para as políticas de distanciamento social seja forjar estratégias para se adequar às condições de moradia nas vilas irregulares e ocupações sociais onde não raro encontramos famílias grandes, de três gerações ou mais, morando em alguns metros quadrados. Citamos o exemplo de Lisa, menina de seis anos de idade, nascida com uma grave deficiência neurológica e que vive acamada numa barraca de três peças com, além de seus pais, cinco irmãos. Nunca aprendeu a falar e só no ano passado, com cinco anos, conseguiu existir sem ser entubada a um respirador artificial. Antes da Covid-19, contava com visitas regulares e fisioterapia organizadas através do posto de saúde local. Agora, diante das progressivas restrições dos serviços, passou a depender dos cuidados quase exclusivos de sua família – o que implica num rodízio de cuidadores mais ou menos engajados, incluindo pessoas que, desde a perda de renda provocada por essas políticas, são obrigadas a sair diariamente sem nenhuma proteção especial, à procura de maneiras para sustentar a família.
Embrenhado numa rede de interdependências que exige uma proximidade dos corpos, o cuidado da Lisa apresenta desafios particulares. Seu exemplo sublinha a necessidade de qualquer política de isolamento social se ajustar à particularidade desses corpos, prevendo maneiras para, ao mesmo tempo, prevenir a doença e garantir a continuidade da rede de cuidados.
Outro ponto importante e pouco abordado pelas coberturas midiáticas é a situação das residências coletivas para pessoas com deficiência. A experiência de países cujo ciclo do contágio está mais avançado demonstra que a vulnerabilidade de pessoas vivendo em asilos e residências inclusivas é estarrecedora. Segundo recente notícia27, os moradores de residências para pessoas com deficiência e outras instalações similares em Nova Iorque e arredores têm 5,34 e 4,86 vezes mais chances de, respectivamente, desenvolver a Covid-19 e morrer desse vírus que a população geral. Uma probabilidade que, mesmo representando o modo como algumas populações são “deixadas para morrer”28, é por muitos compreendida como algo inevitável. Não por acaso, o pai de um jovem com deficiência cognitiva ao saber da morte de um colega de moradia do filho exclamou: “se é o vírus, o que diabos vamos fazer?”. Porém, devemos perguntar se é a virulência da doença nessa “população de risco” que condena tantos residentes e funcionários a uma taxa alta de mortalidade ou se a responsabilidade não cai sobre as precaríssimas condições nessas moradias.
Num primeiro momento, diversos países europeus computavam a taxa de mortalidade causada pela Covid-19 apenas a partir de pacientes que faleceram em hospitais, simplesmente ignorando as mortes em asilos. Isso é preocupante, especialmente no contexto brasileiro, em que temos poucas informações sobre locais como instituições lotadas, escassez de profissionais, cuidadores sem formação especializada trabalhando com parcos recursos e sem materiais de proteção como luvas, máscaras, álcool em gel e com alguns funcionários usando touca de cabelo para cobrir a boca e o nariz29.
Voltamos, afinal, para as tantas práticas de cuidado que, embora mais do que nunca essenciais em época de pandemia, são comumente invisibilizadas nas políticas públicas. As recomendações da OMS são centrais para a proteção da vida de todos, especialmente dos mais vulneráveis. Como aponta a relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) para as questões da deficiência, Catalina Devandas, em meio à Covid-19 as pessoas com deficiência merecem a segurança de saber que sua sobrevivência é uma prioridade30. No entanto, para que as políticas gerais sejam de fato efetivas, devem dar conta das singularidades de certas corporalidades e dos contextos sociais e culturais em que ocorrem. Certas experiências não podem ser excluídas a priori das políticas de saúde global que deveriam protegê-las. Pensar com o cuidado pressupõe olhar para esses contextos que incluem muitas pessoas e famílias cujas condições de vida não se adequam facilmente ao distanciamento social. A Covid-19, diante de tantas perguntas em aberto e desfechos imprevisíveis, nos obriga a viver numa situação de constante tensão em que mais do que nunca cabe uma reflexão acirrada sobre as intrincadas práticas de cuidado.
Helena Fietz é doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do Grupo de Estudos Antropologia e Deficiência (GEAD/UFRGS).
Anahí Guedes de Mello é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora associada da Anis – Instituto de Bioética e membro do Grupo de Estudos Antropologia e Deficiência (GEAD/UFRGS).
Claudia Fonseca é doutora em Antropologia, professora do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS e membro do Grupo de Estudos Antropologia e Deficiência (GEAD/UFRGS).
Agradecemos a colegas do Grupo de Estudos Antropologia e Deficiência do PPGAS/UFRGS pelas discussões e debates sobre o texto.
Referência
PUIG DE LA BELLA CASA, Maria. Matters of Care: Speculative Ethics in More than Human Worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017.
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26 Arte de Rafi Darrow, disponível em: Sinsinvalid. Acesso em: 04 mai. 2020.
27 New York Times, 17 abril, 2020. Disponível em: NYTimes. Acesso em: 29 abr. 2020.
28 Ver, por exemplo, artigo de Patrice Schuch e Mário Eugênio Saretta em Anpocs. Acesso em: 09 mai. 2020.
29 El País, 12 abril, 2020. Disponível em: MSN. Acesso em: 02 mai. 2020.
30 Ver em Reliefweb. Acesso em: 02 mai. 2020.
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Estes textos são parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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